Na vida perdemos o nosso rumo e é preciso recomeçar de outra forma para ter fôlego, se distanciar de algo. Nesse caso, o recomeço veio com uma viagem. Perder uma pessoa próxima, ainda mais em tempos em que não se pode ter um abraço amigo, nos tira o chão. Karolina perdeu o pai para a Covid-19 em abril de 2021, e com isso, se perdeu um pouco. Foi viajar sozinha para a terra de sua família, Itália, em busca de uma parte de si. E lá descobriu uma nova versão dela que agora continua sendo escrita por ela mesma.
Lembrete que a Karol deu no texto, mas é importante reforçar aqui no começo também: cuide da sua saúde mental, emocional, física, todas. Faça terapia, se possível, busque e peça ajuda quando precisar. O seu corpo que te faz viver e experienciar tudo, cuide dele com todo amor e carinho.
Relato escrito por Karolina Bergamo de São Paulo (SP) para Itália – L’Aquila, Roma, Bolonha, Firenze, Genova | 2022
Meu nome é Karolina Bérgamo, sou da cidade de São Paulo, tenho 29 anos e sou uma enlutada da Covid-19. Perdi meu pai, João Carlos, de 66 anos, em abril de 2021. Eu estava há um ano vivendo isolada, respeitando a quarentena. Morava sozinha. Tinha minha casinha, meus gatos, minhas plantas, minhas amigas-vizinhas… tinha meu lugar no mundo.
Até que o chão se abriu
Quando meu pai morreu, eu tinha acabado de pedir demissão do meu emprego fixo e estável e ainda não fazia a menor ideia do que ia fazer da vida. Por ser parte de uma rede bastante privilegiada (branca, cercada de recursos materiais, emocionais etc) o fato de que eu não tinha a menor condição de pensar em procurar trabalho naquele momento não foi um problema. Não faltaram projetos legais para eu trabalhar e me engajar.
E eu nunca trabalhei tanto. Sentava na frente do computador às 8h da manhã e só saia 22h, 23h. Claramente um mecanismo de fuga da realidade. Mas que outra alternativa eu tinha? Ainda estávamos no auge da pandemia e sair de casa não era uma opção. Pelo menos não para mim.
Até que cinco meses depois, lembro de ler uma reportagem cuja manchete era: “O trauma coletivo de Bérgamo, na Itália, após um ano de pandemia”. A primeira coisa que veio na minha cabeça foi: “nossa, preciso estar nesse lugar”. Um lugar que reconhece a pandemia como um trauma coletivo.
Bérgamo é a cidade dos meus tataravós. Luiza Bergamo saiu de lá e foi para a Argentina onde teve meu bisavô Vitório e depois migrou para o Brasil. Onde nasceu minha avó Olinda, mãe do meu pai João Carlos, que morreu vítima do descaso e da falta de seriedade com que o Brasil tratou (e ainda trata) a pandemia.
A decisão da primeira viagem sozinha
Eu nunca tinha viajado sozinha. Só tinha saído do país duas vezes e já fazia bastante tempo. Mas isso nem parecia ter importância.
A morte do meu pai me trouxe perspectiva. Deu tamanho e contorno para as coisas. Me lembrou, da pior forma possível, que estamos aqui apenas de passagem. Que a morte é mesmo a única certeza – ainda que a gente viva tentando evitá-la.
Antes de vender todos os meus móveis, entregar meu apartamento e encaixotar o que restou, precisei lidar com um diagnóstico de depressão e estresse pós-traumático. O pior gatilho foi quando minha mãe pegou covid-19 e eu tive que reviver um processo que culminou em morte. Diferente do meu pai, ela já estava com as três doses da vacina e ficou tudo bem. Mas mesmo assim, não foi fácil.
Psiquiatra. Antidepressivo. Adaptação. Terapia. Ok. Consegui me estabilizar. Demorei seis meses pra me reorganizar e organizar a viagem. E em abril de 2022, quando a morte do meu pai completou um ano, eu entrei num avião e vim.
Um começo na Itália
Estou morando há três meses em L’Aquila, na região de Abruzzo, no centro da Itália. E como tudo na vida: há prós e contras! 🙂 Sim, mais prós do que contras, é verdade. No geral eu tô bem feliz e muito muito orgulhosa da minha decisão. Mas é importante que a gente saiba que a vida fora do Brasil pode ser bem desafiadora também.
Cheguei aqui sem conhecer ninguém, e continuo sem muitas amizades (os que tenho são queridíssimos e… brasileiros). É doido, por que só aqui eu fui entender de verdade o que meus amigos que não são de SP, mas lá vivem, sempre reclamam. É difícil socializar e conhecer pessoas quando todo mundo é bastante fechado. O tal jeito ‘blasé’ paulistano – que nunca me afetou, afinal paulistana sou, existe também aqui.
Resultado… eu que sou extrovertida, comunicativa, ainda não fiz amigos locais.
Tem a questão de estar numa cidade pequena em que quase ninguém fala inglês e o meu italiano, coitado, tá só no começo. Mas acho que tem também a dinâmica da cidade que é beeeem diferente do que eu tô acostumada. Nunca vivi em uma cidade que não fosse a São Paula que nunca dorme com seus 12 milhões de habitantes.
E isso ficou claro quando viajei sozinha para cidades maiores e turísticas e a experiência foi 100% outra. Mais confortável e familiar. Comprovando que o problema é que eu ainda não sei existir no interior mesmo – risos nervosos.
Casas fora de casa
Em Roma, quando entrei no metrô, me senti em casa! haha Tirei até foto na estação Reppublica deles. No jantar, achei uma cantina com cara de tradicional-não-turística e pedi um Cacio e Pepe (macarrão com molho de queijo de pecorino que significa ‘ovelha’ e pimenta). Foi meu primeiro orgasmo gastronômico na Itália. Depois, fui descobrir que existe um termo pra isso: orgastro. Sim, é real.
Enquanto eu estava lá jantando sozinha, tendo um orgastro com meu Cacio e Pepe, um senhor italiano parado na porta do restaurante me observava. Quando olhei de volta, ele falou rindo: “La pasta è buonissima, vero?”. “Bonissima!!!!” respondi rindo. Foi um dos melhores jantares da minha vida.
Em Bolonha, me senti ainda mais em casa. A cidade é incrível. Mobilidade urbana. Tudo plano. Todo mundo de bike. Juventude pra tudo que é lado. Fui pro rolê e fiz amizade com uma Turca, uma Síria e três brasileiros antropólogos que estudam antropologia em facções criminosas como PCC e Comando Vermelho. Sim, muito interessante e rendeu altos papos legais.
Em Gênova, fui pra visitar um casal de amigos (uma brasileira e um Genovês) e conheci amigos italianos que foram bastante acolhedores e me diverti bastante – mas confesso que a quantidade absurda de prédios amontoados e vielas estreitas me deixou um pouco desconfortável. Não sei se ia curtir passar um tempo maior lá.
Em Firenze, não me senti bem pra socializar. Tive umas crises de ansiedade pois estava tudo LOTADO e a maioria das pessoas sem máscara. Como vocês já sabem, Covid pra mim é gatilho. Mas mesmo assim, aproveitei muito minha experiência solo. E contemplei a beleza e a arte na cidade do Renascimento.
La Dolce Vita
Fiz um tour guiado na Galleria Degli Uffizi e vi obras primas de Michelangelo, Rafael, Leonardo da Vinci. Vi a cidade do alto. Me maravilhei com a Cattedrale di Santa Maria del Fiore. É lindeza que não acaba. Vale muito a pena. Mas recomendo evitar períodos de alta temporada (de junho até final de agosto), pois o turismo lá beira o predatório.
No geral, os clichês são reais. É difícil não se apaixonar pela Itália. Ainda que a sensação seja de vários países em um. E faz todo sentido se você olhar pra história da nação e sua unificação ‘tardia’. Até hoje os dialetos têm uma força enorme – são pelo menos 11 mil idiomas diferentes, para 8 mil municípios. Cada região tem seus costumes, comidas típicas.
Sim, nosso Brasilzão também se enquadra nessa categoria e provavelmente eu teria sentido a mesma coisa caso tivesse decidido me mudar para uma cidade do nosso interior. Mas eu decidi fazer o caminho inverso que um dia meus antepassados fizeram em busca de outra vida e atravessei oceanos – tanto fora quanto dentro pra ver o céu a partir da outra metade do mundo.
Ainda não me acostumei com a cidade pequena. Nem sei se vou. Todas as vezes que eu viajei, na hora de voltar pra L’Aquila, vem também a sensação de deslocamento.
Nessa última semana, em especial, uma inquietação gigante me tomou. Vontade de pegar uma mochila e sair por aí. Sem destino definido e sem endereço fixo. Talvez eu faça isso em breve. Mas por enquanto, tenho um compromisso comigo mesma e ele exige que eu permaneça morando aqui.
Auto(re)conhecimentos
A experiência é, acima de tudo, um grande aprendizado. Teria sido muito mais fácil escolher uma cidade grande feito Roma para morar. Mas senti que era hora de experimentar novos espaços, justamente para abrir espaços dentro de mim para novas ‘eus’ nascerem depois que uma parte fundante de mim morreu.
E essa nova “eu” ama viajar sozinha. Todas as mulheres precisam ter essa experiência um dia na vida. E com certeza ter espaços como essa comunidade do Elas Viajam Sozinhas nos dão forças e coragem para isso <3
Fácil a gente sabe que nunca é. Terapia, antidepressivo, hidratação e um mínimo de atividade física, por aqui continuam sendo a “fórmula mágica” para uma vida saudável na nossa sociedade doente.
Grazie mille, Itália. Grazie mille, L’Aquila. Eccomi qui a rinascere e posso continuare a onorare tutti coloro che sono venuti prima di me (Obrigada, Itália! Aqui, estou renascendo e assim posso continuar honrando a vida dos que vieram antes de mim).
Dicas de Karol
Se você for pra uma cidade pequena na Itália, é bom falar, nem que seja o básico, de Italiano. Quase ninguém fala inglês e eles ‘não gostam’ muito de quem não fala italiano. É um país machista, então tem assédio e tem preconceito contra mulheres fora do padrão. Eu não me depilo e as pessoas já apontaram pra mim e riram na rua – algumas vezes. Todo dia alguém me olha como se eu fosse um ET. No Brasil eu nunca passei por nada parecido.
Se você não gosta de ‘treta’, saiba que vai precisar aprender pelo menos a se defender se algum italiano começar a falar alto com você. Acontece e eles são bem da gritaria. Eu odeio e fico meio sem reação. Mas tô aprendendo a me impor, pois aqui não é bagunça e não pode falar assim comigo não hahaha
Prefira pegar trem à ônibus. O motoristas nos carros e ônibus são meio malucões e dirigem beeeeem rápido. Já estive num busão onde o motorista perdeu o retrovisor pra um caminhão e SEQUER FREIOU haha.
As paisagens são lindíssimas! Montanhas e muita natureza. Vale fazer passeios pra regiões ‘menos turísticas’. No frio-inverno, faz MUITO FRIO e no calor-verão, MUITO CALOR. Não tem meio termo. Daí, é bom vir na primavera ou no outono.
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