Existem mulheres viajantes dos séculos passados que desbravaram um mundo muito mais inóspito que o nosso, e fizeram história. Hoje em dia viajar sozinha ainda é tabu, mas já é muito mais aceito do que nos séculos passados. Vamos conhecer um pouquinho mais de cada uma delas?
A ideia desse artigo é lembrar de mulheres viajantes do passado que lutaram até por direito que nós, brasileiras, temos hoje: como ter um passaporte com o nosso nome e não depender do marido para viajar. E também aprender mais do que elas passaram, entender as dificuldades que elas tiveram.
Algumas delas viajaram sozinhas, outras foram acompanhadas em alguns momentos. Mas só o fato da mulher viajar e não ser destinada ao lar e a cuidar do filho naquela época já era um escândalo. Foram elas que abriram debate para a mulher no mundo das viagens.
Imagine só viajar sem nem saber nada do lugar? Nem saber a língua ou ter uma forma fácil de aprender / traduzir? Não ter um meio rápido para voltar pra casa? E nem de comunicação?
Agora, vamos conhecer as viajantes:
Antes de começar
Vale ressaltar aqui que infelizmente a maioria das viajantes que encontrei são de mulheres brancas. Um dos motivos é que mulheres-não-brancas tinham os direitos limitados. E, por isso, não se tem muitos registros de mulheres negras, indígenas, muçulmanas viajantes, mas é importante falar: elas existem.
Pode ser que a história delas virou uma história oral que existe como lenda até hoje em alguma parte do mundo. Ou então que elas não dominavam a escrita, ou que a língua delas não teve traduções e a colonização apagou os rastros delas. Ou que elas não registraram porque isso não era algo grandioso para elas, era natural o que elas viviam.
Todas essas viajantes que aqui estão tinham acesso a leitura e escrita convencional, tinham meios para registrar as suas viagens por textos, cartas, livros, fotos. Muitas não tiveram esse acesso e é por isso que hoje, no século XXI, fica mais difícil de encontrar essas outras viajantes. Mas elas existem.
Além disso, nem todas aqui viajaram 100% sozinhas, algumas tiveram companhias em trajetos ou até o caminho todo. Isso não diminui o impacto que tinha uma mulher viajando naquela época, onde o destino dela era limitado aos cuidados com o lar e os filhos.
E como já falei, o motivo que foi fácil de encontrar essas viajantes foram as escritas delas, os registros que fizeram de suas aventuras. Fica aqui um incentivo para você também escrever a sua história. Vamos contar nossas histórias, vamos registrar a história e diversificar as vozes que escrevem sobre isso!
As referências estão em português, inglês ou espanhol.
1 | Júlia Lopes de Almeida – Escritora brasileira (1862-1934)
Júlia adorava escrever versos desde pequena. Pegava folhas do escritório de seu pai e ficava escrevendo escondida para ninguém ver o que ela fazia, porque era mal visto menina fazer aquilo. Foi crescendo e sua paixão pela escrita persistiu até que ela virou escritora e passou a escrever crônicas sobre a vida, sobre o que via e vivia. Quando cresceu, foi uma das primeiras mulheres no país a escrever para jornais.
Ela defendia a educação, era abolicionista declarada, e se chocava ao ficar sabendo de desmatamentos feitos para construir rodovias. Passou a viajar pelo país e escrever as suas impressões, as diferenças e as semelhanças que temos.
Apesar de ter viajado para África e até morado na Europa, sua paixão era a terra verde-e-amarela mesmo, não teve jeito. No ano de 1912, ela escreveu: “Estou convencida, agora mais do que nunca, de que precisamos fazer a propaganda do Brasil. Por que a verdade é esta: nós conhecemos muito imperfeitamente o nosso país. Acabo eu própria de obter uma prova disso, observando num Estado vizinho coisas, que estava bem longe de imaginar.”
Em 1920 lançou o livro Jornadas do Meu País, onde contava sobre as expedições que fez para diferentes lugares do Brasil para mostrar às pessoas a importância de conhecer nossas raízes.
Aliás, ela foi uma escritora de best sellers e também foi uma das fundadoras da Academia Brasileira de Letras. Mas, por ser mulher, Júlia não pôde fazer parte e foi excluída da ABL, a deixaram assistir reuniões sem fazer parte oficialmente.
2 | Annie Londonderry – Cicloviagem por 15 meses (1870-1947)
Annie era de família judia, nasceu na Letônia e quando ainda criança foi morar nos Estados Unidos. Ainda muito jovem teve 3 filhos pequenos e não se contentava com essa vida. Em uma entrevista anos mais tarde, ela disse: “Nem sempre eu quis viver minha vida em casa e ter um bebê por ano”. Agora imagina que isso foi dito em 1890!
Annie já era a frente do seu tempo, além de ser dona de casa, mãe de três crianças, também trabalhava fora em uma agência que vendia espaços publicitários em revistas, jornais. Com isso adquiriu conhecimento em marketing e passou a usar isso ao seu favor.
Annie diz que dois homens ricos a desafiaram a cruzar o mundo de bicicleta, afirmando não ser possível uma mulher fazer isso. E, se ela conseguisse, eles dariam 10 mil dólares a ela. Anos mais tarde, seu neto que escreveu um livro sobre a aventura dela disse que provavelmente ela inventou essa aposta para conseguir vender melhor a história dela.
E foi com a história da aposta que ela conseguiu patrocinadores e pessoas que a apoiaram na estrada. Ela ficou 15 meses pedalando pelo mundo, tirando fotos e fazendo exposições para ganhar dinheiro. Assim como também fazia aparições em eventos esportivos para conseguir financiar a viagem.
Como está escrito em um site dedicado à história dela e aos direitos das mulheres ciclistas, eles escrevem: “Este não foi um mero teste de resistência física e força mental de uma mulher; era um teste da capacidade de uma mulher de se defender sozinha no mundo.”
Detalhe: antes de começar a viagem ela nem sabia andar de bicicleta.
3 | Ida Pfeiffer – ex-dona de casa (1797-1858)
Ida nasceu na Áustria, em uma família burguesa. Ela tinha 4 irmãos, se vestia com roupas de menino para poder brincar com eles. Como está escrito na biografia dela, “era selvagem como um garoto e mais atrevida que os irmãos mais velhos”.
Teve uma infância muito feliz até seu pai falecer. Sua mãe a obrigou a se casar com um homem muito mais velho que ela, mas que era rico e trabalhava com política. Pensando que estava garantindo o futuro da filha. Na verdade, estava esperando o momento de dar a volta ao mundo.
Aos 45 anos, depois de dois filhos já grandes e uma acusação de corrupção que acabou com a carreira do marido, Ida pegou a herança da recente morte da mãe, vendeu o que tinha e se jogou no mundo. Uma ex-dona de casa, e agora exploradora. E ela não fez apenas uma não, foram várias longas viagens a lugares que naquela época pouco se escutava sobre.
A primeira viagem foi uma peregrinação até a Terra Santa a pé. Escreveu o livro Viajes de una vienesa a Tierra Santa no anonimato, e foi um sucesso na época. Com isso ela conseguiu financiar outras aventuras e livros. Depois, foi pra Islândia, Madagascar, países nórdicos, Tahiti, China, Malasia, Singapura, Índia, Ásia Central, Grécia e muitos outros.
Diferente de outros viajantes na época, Ida não tinha muito dinheiro, então viajava com poucos pertences, dormia em casa de família e de quem a acolhia, comia as comidas mais baratas. Esse estilo de viagem, (cof cof, mochileira), a permitiu realmente conhecer de perto as diferentes culturas e costumes.
Em 1846 embarcou numa jornada volta ao mundo com início no Rio de Janeiro. Escreveu sobre a emoção de ver o Pão de Açúcar de longe, sobre a vegetação e as praias lindas, mas também reclamou da sujeira nas ruas e da falta de esgoto na época. Essa primeira viagem volta ao mundo durou 900 dias. Ela foi a primeira mulher a dar a volta ao mundo, e fez isso outra vez em 1951.
Todas as aventuras dela foram escritas em forma de diário e transformadas em livros, que agora já não eram mais no anonimato. “Na minha juventude eu sonhava em viajar; na maturidade tenho o prazer de refletir o que contemplo”, escreveu. Morreu depois de pegar malária 17 anos depois de começar a viajar, aos 62 anos, enquanto estava a caminho de conhecer a Austrália.
Hoje o túmulo dela existe até hoje no cemitério em Viena.