Relato da Travessia Siririca (PR) sozinha

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O que você vai ler nesse artigo

Fazer uma travessia é um feito gigantesco, sozinha então é mais. Viajar sozinha, por mais prazeroso e libertador que seja, é muito desafiador. Fazendo uma travessia de 22km em meio à chuva, vento e companhias inesperadas, ainda mais. Mas isso não pode ser um impedimento para realizar os nossos sonhos, pelo menos não nos olhares de Luci.

Ela realizou a Travessia da Siririca por cima em 8 dias, para aproveitar um pôr e nascer do sol em cada pico. O planejamento, naturalmente, não foi seguido à risca. Parte pelos desafios que foram se apresentando no caminho, e parte maior por Luci saber respeitar os próprios limites. 

Afinal, viajar só é sobre reconhecer a própria força dentro das nossas vulnerabilidades.

Relato escrito por Luci Rodrigues

Soube nesse instante a possibilidade de envio de relatos de viagem pela Vilma Rezende, e cá estou eu, dentro da barraca e com chuva lá fora, pensei: “ Por que não?”

Eu poderia contar sobre a minha última travessia desse mês, de nada mais nada menos que praticamente 60 km de caminhada sozinha, 25 mil passos… Mentira, eu não contei, rs. Escolho como primeiro relato essa travessia sozinha de 22 km, normalmente realizada em 3 dias mas, para mim, foram 8 dias.

A travessia inicia-se na Chácara do Bolinha em Campina Grande do Sul (PR), pertinho de Quatro Barras. Os preparativos são sempre a verificação de clima, como chegar ao local, quantos dias serão necessários e comida e água suficientes. O Sr. Bento e sua família foram ótimos em sua acolhida e logo que cheguei, consegui sentir a energia boa do local. 

Acampei para descansar do trajeto e iniciar a travessia sozinha logo pela manhã, no dia seguinte. Jantei pastéis, cervejinha e coca com limão que peguei no pé ao lado da barraca. 

Os primeiros (pequenos) desafios 

O dia amanheceu com céu limpo, tomei meu café rapidamente, desmontei tudo e iniciei a caminhada sem ser nem 8 da manhã. Detalhe que meu pé direito ainda doía da fascite plantar (inflamação na sola do pé), estava enjoada da injeção de corticoide que tomei na bunda no dia anterior e levava os medicamentos que ainda tomaria por mais 3 dias.

A caminhada da fazenda às placas de indicações da trilha levou em torno de 2 horas, andando sem pressa. Atravessei riachos, bebi água fresca e ouvi os pássaros cantando alegremente. Nas placas, primeiro acesso a portinha rosa na mata para um xixizin e quando volto, para minha surpresa, uma das minhas garrafas de água estava vazando por um furinho microscópico. “Duende FDP rs”. Ok, quando não se tem o que fazer, que adianta reclamar?

Segui para a primeira montanha do percurso, chamada Camapuã. Escala aqui, suja ali, escorrega aqui e quando cheguei na base dele, na parte mais aberta, avistei um casal que descia. “Vocês tem alguma garrafinha pet que vão descartar aí? … Recebi prontamente, uma pet de 1 litro amassada e com vinho branco ainda hahaha… Problema de abastecimento de água, resolvido.

Chegando no Camapuã, tirei fotos e fiz algumas filmagens, a ventania era forte e encontrei do outro lado, com vista para o próximo morro, chamado Tucum, quase nada de vento. Acampei ali mesmo. Minha ideia, era passar uma noite em cada pico, para se possível assistir tanto o pôr do sol quanto o nascer do sol.

Objetivo conquistado no Camapuã. O nascer do sol só não foi mais perfeito pelo barulho do povo que, mesmo ao lado de uma barraca, não tem discernimento em conseguir ser educado e respeitar o próximo. Enfim, isso é reclamação para uma página inteira rs.

O segundo pico: Tucum

Logo após o café, iniciei os preparativos para seguir meu caminho até a segunda montanha, o morro Tucum logo a frente. O caminho é descer o Camapuã e nem mesmo caminhar tanto no vale e já consegue subir o Tucum. Chegando no cume, o vento era ainda mais forte aqui, e com muito mais áreas de acampamento. Escolhi um local com uma boa inclinação para escapar um pouco do vento e mais isolado, para tentar ficar mais tranquila.

A noite, foi com muito vento e na manhã seguinte, novamente, mesmo stress pelas pessoas caminhando e parando do lado da barraca para conversar. Respiro fundo, conto até 23 mil e começo a desmontar tudo para seguir até o próximo cume. O Cerro Verde, que apelidei de Cerro Tenebroso, como será entendido em breve.

A caminhada para o próximo cume é um pouco mais longa e bem gostosa de ser feita. A descida do Tucum é bem inclinada, com alguns trechos de corda e muita lama. Chegando ao vale, contorno um pequeno rio, abasteço as garrafas e inicio a subida ao Cerro Verde.

Havia escutado que o cerro tem um bom local para acampamento e protegido dos ventos, o que constatei que não era exatamente assim. Uma pequena área, outra improvisada e o livro do cume (caderno deixado no cume de montanhas para passageiros deixarem seu registro). Acabou.

Encontrei um grupo de pessoas com guia que chegaram do Itapiroca, a outra montanha logo a frente que tem o acesso pela outra fazenda, que interliga também o acesso ao pico Paraná. E esse grupo foi o último que vi até o final da travessia sozinha… E a paz reina, minhas senhoras!

Quando achei que iria morrer

A ventania era a maior desde o começo da caminhada. Havia sim previsão de chuva, mas sabemos que a natureza não está nem aí para os planejamentos, e quando olhei a previsão para a subida ela já havia mudado.

Montei acampamento, li, jantei e o inferno subiu a montanha. No decorrer da noite, fiquei dentro da nuvem e a barraca não só mexia para lá e para cá, como até tentava subir o piso da barraca. Ainda bem que havia feito amarrações e prendido muito bem, ou teria ido conhecer o padre do balão.

A montanha rugia, tremia e castigava as paredes finas na barraca com chuva pesada. A cada clarão, fechava os olhos e só aguardava o fim. Quando o raio caia à esquerda, a montanha da direita respondia prontamente e a rave (festa eletrônica) no cerro tenebroso continuava.

Na madrugada, houve um pequeno momento onde os raios se afastaram um pouco, peguei meu caderninho com anotações de viagem e escrevi minha carta de despedida. Coloco aqui a última frase: “Não tenho certeza se verei o sol amanhã, não tem problema, a natureza é grandiosa e assim quis… Me sinto feliz!”

Coloquei até uma carinha feliz… É nessas que vejo que não bato bem hahahaha

Não preciso dizer que não dormi, né? Até tentar segurar as paredes da barraca, sentada, braços levantados, essa foi a posição que fiquei a noite toda. Buda, te admiro muito hoje.

Um merecido descanso

A chuva no dia seguinte continuava, mas agora sem raios e trovões. Não perdi tempo, precisava perder altitude e arrumei tudo na chuva e comecei a descida. De volta à chácara do bolinha? Mas nunca… Ainda tinha energias e esperanças que o tempo colaboraria.

Segui para o próximo cume que seria o Luar. Antes, era necessário passar pelo Meia Lua e Ovos de Dinossauro. Segui por dentro da neblina, chuva fina e com a esperança de que no Luar o acampamento fosse mais  protegido.

Sequer parei no Ovos de Dinossauro, não dava para ver nada, e antes de chegar ao luar, o pé direito palpitava e sentia ele esquentando. Bom, alguma parte do corpo estava quente, o resto era frio puro. Hipotermia mandava abraços.

Como já havia lido, o cume do Luar é bem improvisado, em aclive acentuado, e claro, desprotegido. Não ficaria ali nem que um anjo descesse dos céus e colocasse um XIS na terra indicando o lugar. O que eu não queria era aquela ventania novamente, uma rave na vida foi suficiente. 

Segui caminho por uma pequena florestinha, que dificultou muito a minha navegação devido a vários caminhos marcados que não davam em lugar algum e que sumiam do nada. Finalmente encontrei o caminho atravessando o pequeno riachinho. Aqui, havia pontos de acampamento até satisfatórios, mas eu senti que merecia ficar mais abrigada. 

Mais uma noite improvisada

Voltei a florestinha, encontrei um lugarzinho todo torto e com pequeno aclive, ao lado do riozinho. Analisei, medi, improvisei e foi ali mesmo. Só não podia me mexer muito, o solo consistia em folhas secas, raízes e musgo. Ficava um pouco acima do solo, onde passava a água. Mas estava abrigada do vento e um pouco da chuva já que as árvores cobriam os céus. A chuva continuou e fiquei acampada aqui por 2 noites, lendo e ouvindo a natureza que nunca para.

Era hora de me mexer, arrumar as tralhas e seguir na chuva mesmo até outro ponto de acampamento. A intenção agora era chegar até o Última Chance, um rio que é a interseção entre a Fazenda do Bolinha e o Pico Siririca, tanto pela travessia por cima quanto por baixo, vindo da fazenda, até a base do cume.

Essa caminhada foi longa, exaustiva e cheia de perdidos, pois eu não conseguia enxergar as montanhas e saber para onde exatamente estava indo. Estar sem GPS aqui é sinônimo de ficar perdida e totalmente desorientada, pois existem vários caminhos que não chegam a lugar algum.

Caminhei exaustivamente o dia todo, com muito cuidado, pois além do pé dolorido, a visibilidade era bem pouca, chuva na cabeça e checar o GPS a todo momento e não deixar molhar foi um saco. Até que finalmente, cheguei ao Última Chance. Andei, analisei e encontrei outro ponto de acampamento bem improvisado. Mas ali estava mais animada, já estava aos pés do Siririca e bastava ter sorte para o tempo abrir e subir… lá lá lá… Só que não aconteceu nada disso. 

Hora de chegar ao destino final: Pico Siririca/Ciririca

O acampamento improvisado só serviu para não sentir a chuva que vinha de cima, pois já entrava água por baixo e pelas paredes, e estava apenas com uma muda de roupas secas e o saco de dormir que tinha o maior cuidado para não molhar, mas não consegui impedir que ficasse úmido.

À noite, dividia minha atenção com o barulho da chuva e os roedores que andavam por baixo da barraca, no solo alto cheio de raízes. Quando o cansaço batia, era cada cotovelada e reclamação para ficarem quietos, enquanto a resposta deles foi um galho que trincou e caiu do lado da barraca. Preferi deixar de reclamar com eles!

Depois de duas noites, a comida acabando e a chuva sem dar sinal que pararia, decidi subir de ataque o Siririca e ao menos conhecer o local sem desistir de finalizar a empreitada.

Chuva fina, neblina, escorrega aqui e ali, os dedos eu já mal conseguia sentir, e enfim, cheguei na rampa do pico. Nada mais que uma super pedra que, com a chuva, estava um tremendo sabão.

A atenção foi triplicada, um deslize e já era. Tem cordas fixas no local, o que nunca consigo confiar 100% nelas. E nem de altura eu gosto, mas vi que conseguiria seguir e fui até chegar em um ponto que não conseguiria mais.

Após uma subida íngreme e escorregadia, saí da rampa e iniciei uma caminhada sem fim pela crista em meio a florestinha baixa. E nada de ver as famosas placas da Copel (Companhia Paranaense de Energia). Até que finalmente, uma nuvem se dissipou e consegui visualizá-las. Havia finalmente, alcançado o Siririca.

Eu tremia, o vento era forte, o pé ardia pelo esforço da subida. Não quis demorar muito.

Já dizia o ditado: “para baixo todo santo ajuda”

Estava encharcada e passar mais uma noite ali, vestir novamente as roupas molhadas, não me animava. Arrumei tudo o mais rápido possível, coloquei a cargueira nas costas. Só pensava em um banho quente que não usufruía a uma semana.

A descida foi extenuante, pois em diversos pontos haviam aclives bem acentuados e pontos de escalaminhada que, por vezes, achei que não conseguiria transpor. Pelo menos conforme eu descia a temperatura ia ficando melhor e parei de tremer. O pior mesmo era o caminho que escorregava demais, o chão era praticamente pura raiz e quando a raiz fica molhada é um sabão danado. 

Em um dado momento, senti a presença de algo ou alguém me observando, e não tive mais sossego. A cada passo, uma olhadela atrás, canivete na mão e a certeza que o cansaço era algo muito desfavorável para mim naquele momento. Algumas lágrimas surgiram, rapidamente levadas pela chuva que não diminuía.

Tentava apertar o passo inutilmente, só me restava seguir e não parar. Quase no final da tarde, percebi o solo que mudava, os aclives foram se acentuando e o que imaginei era realmente real. Havia chegado, finalmente, nas placas!

Já me sentia em casa, energias psicológicas renovadas, e toquei descer o mais rápido que podia, quase trançando as pernas. Consegui chegar na fazenda no comecinho da noite. Montei a barraca para que pudesse secar, e então, realizei a vontade do tão esperado banho quente. Dormi o sono dos justos, após 8 dias que havia iniciado a travessia sozinha.

No dia seguinte, café da manhã merecido e ainda precisei ir andando até o asfalto, mas estava em paz e muito feliz por ter finalizado com sucesso a caminhada. Mal cheguei no asfalto, consegui uma carona de um paulista caminhoneiro que me deixou em Curitiba.

Dicas para quem quer fazer travessias

A travessia sozinha é exigente. Navegação e senso de navegação são fundamentais, assim como um mínimo de preparo físico e muito preparo mental, principalmente se passar por situações com um perrengue assim. 

Travessias de montanha e mata são necessários um cuidado redobrado, uma torção ou encontro com animais perigosos, inclusive da mesma espécie humana, são sim uma possibilidade e pode ocorrer. Às vezes, acontece de ter medo, mas vai com medo mesmo. 

Se existe a aceitação no início da caminhada e a consciência está plena com tudo que pode ocorrer, desde algo positivo ou negativo, basta abraçar a jornada e seguir até onde chegam seus próprios limites.

Dica do Elas | Tenha sempre pelo menos um mapa offline baixado no seu celular para poder checar se está no caminho certo, para onde seguir. Neste artigo aqui eu ensino como baixar e como usar esses mapas offline usando Maps.ME e Google Maps, mas em trilhas também tem o WikiLOC que é específico para isso.


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